(ENTREVISTA CONCEDIDA AO “INFORME ENSP”, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz)
Informe ENSP: É verdade que os medicamentos são a principal causa de intoxicação humana por agente tóxico no país?
Álvaro Nascimento: Sim, é verdade. Há mais de dez anos que os medicamentos são o principal agente de intoxicação humana oficialmente registrados no Brasil, segundo o Sistema Nacional de Informações Tóxicológicas (Sinitox) da Fiocruz. Mesmo retirando as tentativas de suicídio destes números, os medicamentos seguem na liderança das intoxicações. Em 2007, segundo o Sinitox, foram 34.028 casos de intoxicação por medicamentos. Se tirarmos os 15.119 casos de tentativas de suicídio, temos 18.909 casos de intoxicação por medicamentos. Se dividirmos por 365 dias do ano, são quase 52 casos por dia, ou seja, praticamente um caso oficialmente registrado a cada 30 minutos. E devemos considerar três questões. A primeira é que estes casos são quase que exclusivamente os notificados pelo sistema público de saúde, já que a rede privada pouco notifica, o que praticamente exclui deste índice todos os 40 milhões de brasileiros cobertos por planos de saúde, que em caso de intoxicação buscam assistência na rede credenciada a seu plano. Outro fato a ser considerado é a subnotificação que ocorre mesmo no âmbito do SUS. E a terceira questão reside no fato destas notificações se referirem basicamente aos casos mais graves, cujas manifestações causam tal incômodo que fazem com que a vítima saia de casa, enfrente todo tipo de dificuldade conhecida para ser atendida no SUS. Esses ingredientes juntos indicam quer estes casos devam ser em número ainda maiores.
Informe ENSP: E isso é culpa de quem? De uma publicidade abusiva de medicamentos para a população? De uma automedicação?
Álvaro Nascimento: A indústria farmacêutica argumenta que não há como comprovar que esses números são decorrentes da propaganda de medicamentos. Só que a influência que a propaganda de medicamentos tem junto à população está mais que comprovada. Em pesquisa realizada em 2007 pelo Procon de São Paulo, por exemplo, diante da pergunta “Você acha que a publicidade de medicamentos induz à automedicação?” nada menos de 63,33% dos entrevistados disseram que sim. Claro que esta é uma característica cultural da população brasileira. Mas essa cultura não caiu do céu. Ela foi e é estimulada diariamente, com vistas a elevar o consumo de produtos farmacêuticos, desconsiderando o perigo desta prática. Essa mudança cultural não é algo simples de ser feito, mas ela precisa ser iniciada. Agora, se o próprio modelo regulador continua estimulando o consumo, com frases do tipo ‘a persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado’, isso fica cada vez mais difícil de acontecer. O que essa frase traduz de fato? A lógica de que é correto consumir pelo menos o primeiro medicamento e só no caso dos sintomas persistirem um prescritor deve ser procurado. Ao invés de ser uma frase de alerta, na prática é uma frase de estímulo à automedicação. Não é à toa que é a exigência da atual regulação mais bem cumprida pelo setor regulado, maior interessado na elevação do consumo de medicamentos independente da racionalidade de sua administração. No frigir dos ovos, o modelo regulador – por incrível que possa parecer – impõe uma frase nas peças publicitárias que submete a população a risco sanitário concreto. Um exemplo é a grande quantidade de princípios ativos que existem no mercado e que são contraindicados para idosos, portadores de doenças crônicas ou crianças, por exemplo, mesmo entre os chamados medicamentos de venda livre ou isentos de prescrição. A mais nova resolução da Anvisa relativa ao tema mantém essa e outras fragilidades do modelo regulador anterior.
Informe ENSP: Você se refere a RDC 96/08, de dezembro de 2008, que esteve em consulta pública por três anos, dando prazo de seis meses para o setor regulado se adequar à nova norma, ou seja, até junho de 2009, inclusive com a proibição de ‘celebridades’ de anunciar medicamentos de venda livre.
Álvaro Nascimento: Na verdade não há uma proibição em relação às chamadas celebridades. A exemplo de outras concessões inadmissíveis feitas pela Anvisa em favor dos interesses do setor regulado, o que a nova Resolução diz de fato é que estas celebridades – atores famosos, atletas, etc. -podem, sim, aparecer sem nenhum problema em peças publicitárias. A única vedação reside no fato delas não poderem, agora, recomendar o medicamento ou sugerir que as pessoas façam uso dele. Mas a sua imagem pode ser utilizada fartamente junto a do medicamento, o que dá no mesmo. No meu modo de ver, é uma mera mudança cosmética, superficial, para dar apenas uma aparência de maior rigidez na nova Resolução. Mas não passa disso. O texto é claro: ‘as pessoas leigas em medicina ou farmácia e que possuam características que sejam facilmente reconhecidas pelo público em razão de sua celebridade, ou seja, notabilidade, reputação, fama, podem aparecer em propaganda de medicamentos, entretanto, não podem afirmar que usam determinado medicamento ou mesmo recomendar o seu uso’. Depois de tanta discussão, de consulta pública, debates em torno do assunto, você simplesmente proibir alguns verbos como ‘tomar’, ‘comprar’, ‘usar’ na boca de celebridades, mas elas continuando a aparecer em comerciais, é uma mudança absolutamente superficial em relação ao que efetivamente poderia e deveria ser feito. Daí a dizer que a propaganda utilizando celebridades está proibida vai uma enorme distância. Isso acaba confundindo a população.
Informe ENSP: E como está a questão agora? O setor regulado entrou na Justiça argumentando inconstitucionalidade na nova Resolução da Anvisa.
Álvaro Nascimento: Não foi todo o setor regulado que entrou na Justiça, mas sim o Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) e a Associação Brasileira das Empresas de Rádio e Televisão (Abert), arguindo a inconstitucionalidade da Anvisa em legislar sobre propaganda, com base inclusive no parecer da Advocacia Geral da União. Isso é uma velha discussão que vem desde a Resolução anterior, a RDC 102 de 2000, na qual o setor regulado acabou perdendo o debate jurídico. Os meios de comunicação e as agências de publicidade conseguiram uma liminar suspendendo a nova Resolução, arguindo que esse tipo de iniciativa seria exclusiva do Congresso Nacional, via projeto de lei. O que está em jogo, a meu ver, é uma estratégia do setor regulado de querer levar o debate sobre a prevenção do estabelecimento do risco sanitário presente na publicidade medicamentosa para a esfera do Congresso Nacional, hoje infelizmente uma instituição dominada pelos interesses dos mais variados setores regulados e de onde é praticamente impossível que saia algum tipo de legislação que venha ferir os interesses de quem, por exemplo, financia as campanhas eleitorais.
Informe ENSP: E qual a sua opinião sobre o processo que levou à edição da nova resolução da Anvisa?
Álvaro Nascimento: Eu vejo que a Anvisa e o Ministério da Saúde perderam uma grande oportunidade de submeter o setor regulado às normas do que existe nos países mais avançados, como em boa parte da Europa, incluindo a França, Espanha, Reino Unido, Inglaterra, Suíça, como também na Austrália, México e outros. Minha avaliação é que, com a nova Resolução, todas as principais fragilidades do modelo anterior se mantêm. De fato, a população segue submetida a risco sanitário concreto, vítima da propaganda de medicamentos feita de forma irracional e perigosa, enquanto a Anvisa segue mantendo uma regulação apenas aparente, feita a posteriori do acometimento da irregularidade e não analisando previamente as peças como já fazem vários países avançados. A Agência se satisfaz em aplicar multas irrisórias, que não chegam a 1% do que é investido em publicidade pela indústria farmacêutica. Não há mecanismos eficientes que impeçam que mesmo estes valores ridículos sejam repassados aos preços dos medicamentos e pagos pelo consumido. E a frase obrigatória em todas as peças – que deveria ser de alerta mas que é de estímulo à automedicação – está mantida.
Informe ENSP: O que está por trás disso tudo?
Álvaro Nascimento: O Brasil convive com um modelo de regulação, baseado nas agências criadas no Governo Fernando Henrique Cardoso mas mantido incólume no Governo Lula, sedimentado no que eu tenho chamado de ‘Triângulo da Modernidade Cínica’ nas aulas e palestras que dou. Imagine um triângulo onde em uma das suas pontas você tem nosso Senado Federal, com seus 81 membros, dos quais 16, isto é, 20%, não têm um voto sequer, porque são suplentes ou suplentes dos suplentes. Esse Senado é quem aprova os nomes dos dirigentes de todas as agências reguladoras como Anvisa, Aneel, Anatel, ANS, etc. Na segunda ponta deste triângulo cínico você coloca estes dirigentes, que deveriam regulamentar, fiscalizar e eventualmente punir todos os setores regulados no Brasil, de telecomunicações à indústria de medicamentos. E na terceira ponta deste triângulo temos todos estes setores regulados, que por incrível que possa parecer se conectam com a primeira ponta do triângulo através dos conhecidos mecanismos de financiamentos milionários de campanhas. Isso quando o Senador – suplente ou não – é o próprio representante de um dos setores regulados. É aí onde reside o maior cinismo do modelo. Algum brasileiro que acompanhe minimamente a conjuntura de nosso País e as deficiências de nosso incipiente sistema eleitoral tem dúvidas quanto ao evidente conflito de interesses nesse modelo? Qual a modernidade existente nele? O desenho do modelo já fere de morte, fragiliza tremendamente, o papel destas agências.
Informe ENSP: Apesar disso, a Anvisa não seria a agência que melhor atua?
Álvaro Nascimento: Eu não afirmaria isso. Analisando apenas este exemplo concreto da nova resolução da propaganda farmacêutica, por exemplo, a Anvisa preferiu descartar todas as 19 propostas enviadas no âmbito da Consulta Pública sobre o tema, assinadas por 150 especialistas na área de uso correto do medicamento e 12 instituições de referência, incluindo as científicas, profissionais e de defesa do consumidor como o Idec, e optou por acatar os argumentos do setor regulado. Até José Gomes Temporão assinou, quando ainda não era Ministro, as 19 proposições rechaçadas pela Anvisa, que preferiu continuar correndo atrás de riscos sanitários já estabelecidos, quando poderia ter optado por modelos alternativos e muito mais eficientes.
Informe ENSP: A Anvisa não fez um amplo estudo sobre a regulamentação da propaganda de medicamentos antes de editar a nova resolução?
Álvaro Nascimento: Ela fez, sim, uma profunda pesquisa em legislações internacionais, através de uma competente equipe da Universidade Federal de Santa Catarina. Este estudo resultou no importante livro ‘Estudo comparado: regulação da propaganda de medicamentos’ (http://www.anvisa.gov.br/propaganda/estudo_comparado.pdf). A publicação analisa os vários modelos de controle da propaganda no mundo, incluindo a dos países que citei, como os da União Europeia, Austrália, México e Equador. Numa das principais questões analisadas no livro, que é o mecanismo da anuência prévia das peças publicitárias pelos sistemas nacionais de vigilância sanitária, o livro da própria Anvisa demonstra que já são vários os países que não querem mais passar pela possibilidade de uma propaganda medicamentosa enganosa submeter sua população a risco para só depois o sistema de vigilância sanitária eventualmente tirar a propaganda do ar e distribuir multas. Várias das nações analisadas já optaram há anos pelo mecanismo da anuência prévia. A indústria faz sua peça publicitária, submete ao sistema de vigilância sanitária para análise e, aprovada a peça, ela recebe autorização para ser disseminada. Não sou eu que estou dizendo isso, é o que está no livro da Anvisa.
Informe ENSP: Você é a favor dessa anuência prévia?
Álvaro Nascimento: Sim, não só sou a favor desse tipo de modelo como esta foi uma das principais propostas apresentadas à Anvisa no âmbito da Consulta Pública.
Informe ENSP: Mas se a Anvisa coloca essa possibilidade em uma publicação oficial dela própria, o que aconteceu então?
Álvaro Nascimento: Ainda em 2005, no mesmo ano da publicação e distribuição deste livro, a Anvisa se propôs a reformular o nosso modelo de regulação da propaganda. Ela considerou a questão da anuência prévia? Não. Muito pelo contrário. Quem propôs isso, inclusive com base no livro dela, foram 150 especialistas em uso correto e as instituições acadêmicas, científicas, profissionais e de defesa do consumidor, numa frente que poucas vezes foi construída no âmbito das várias consultas públicas já realizadas. Mas não só esta, mas todas as outras 18 proposições que apresentamos foram descartadas. A Anvisa optou por contemplar os frágeis argumentos do setor regulado, que chegam ao absurdo de defender que a anuência prévia da propaganda medicamentosa representaria uma censura à liberdade de expressão. Chegaram a afirmar em alguns debates que nós defendíamos a volta da ditadura, como se em países como França, Inglaterra e Austrália fossem ditaduras pelo simples motivo de estabelecerem a anuência prévia para a propaganda farmacêutica. Pergunte-se a um cidadão francês, inglês, espanhol ou australiano se ele vive sob uma ditadura por lá existir anuência prévia a propaganda de medicamentos e imagine qual seria sua reação.
Informe ENSP: Além da frase “A persistirem os sintomas …”, a nova resolução obriga a inserção de outras frases, verdadeiramente de alerta, a respeito das possíveis reações adversas de alguns medicamentos. O que você acha disso?
Álvaro Nascimento: É claro que é melhor ter estas frases verdadeiramente de alerta sobre os riscos daquele medicamento do que não ter nada. A frase alerta o paciente, mas por outro lado o responsabiliza também porque ele continuará tomando o medicamento por conta própria sem saber se está fazendo bem ou mal a ele. Então, a pergunta fundamental a ser feita é: para que propaganda de medicamentos? Medicamento é um produto como outro qualquer, sem risco, e que pode ser tratado como uma fita crepe ou uma camisa? Não.
Informe ENSP: Mas não existem países que têm liberdade na publicidade de medicamentos?
Álvaro Nascimento: Claro que sim. Onde é que a propaganda pode ser feita de forma larga, e esse é um dos argumentos da nossa indústria farmacêutica? Nos Estados Unidos e Nova Zelândia, por exemplo. Agora, vai nos Estados Unidos e tenta comprar um medicamento sem receita, é impossível. No meu modo de ver, o que aconteceu com esse novo modelo regulador é que só teve uma mudança cosmética com a finalidade de dizer que houve um maior tipo de rigidez. E o ministro Temporão, um dos que assinaram as 19 propostas resultado da Oficina de Propaganda realizada aqui na ENSP em 2005, e que foram submetidas para a consulta pública da Anvisa, foram absolutamente rejeitadas. Colocamos na internet 19 propostas, com 157 especialistas assinando as mesmas, além do apoio de 14 entidades, e a Anvisa não incorporou nenhuma. E na semana do anúncio da nova resolução, o presidente da Anvisa recebe um prêmio do setor regulado, mais precisamente da Associação Brasileira da Indústria de Medicamentos Isentos de Prescrição (Abimip), e comemora isso.
Informe ENSP: Mas a Anvisa não tem que vigiar o setor regulado? Não há um conflito de interesses nessa questão?
Álvaro Nascimento: Claro que há. O presidente da Anvisa não pode receber esse prêmio, é um conflito total de interesse. A própria Anvisa diz, em seu site, que 90% da propaganda de medicamento está irregular. De cada 100 propagandas, 90 tem algum risco sanitário. Só que são riscos sanitários sérios.
Informe ENSP: Então podemos dizer que essa questão da publicidade de medicamentos parar no Tribunal Federal não terá prazo para solução.
Álvaro Nascimento: Já ouviu falar do processo de Judicialização da Saúde, aonde tudo está indo parar na justiça? Essa questão não foi diferente. Corre-se o risco de isso se transformar a propaganda de medicamentos num novo item de judicialização da saúde. A Anvisa pode ou não pode legislar sobre propaganda? Ela fez consulta pública, mas isso é uma questão do Congresso Nacional, porque tem a ver com liberdade de manifestação e expressão que está contemplada na Constituição. Só que a Constituição traz, em seu artigo 220, parágrafo IV, quais são os produtos sujeitos a restrições legais, que são medicamentos, terapias, tabaco, álcool etc. Entretanto, o setor regulado alega apenas a constitucionalidade do artigo 220, assegurando a liberdade de expressão, mas esquece justamente do artigo IV.
Informe ENSP: A publicidade de medicamentos pela internet entra nessa regulação?
Álvaro Nascimento: No caso da internet o que está ocorrendo não é bem uma propaganda de medicamentos sobre prescrição, mas sim a utilização da internet como forma de burlar, junto ao grande público, essa resolução. Na verdade o que está sendo feita é uma propaganda de doenças que remetem a determinados sites onde as informações levam ao uso de determinados medicamentos sobre prescrição. Existem várias denúncias e processos junto as instituições europeias sobre isso e não é uma novidade no Brasil.
Informe ENSP: O Brasil, e o mundo, está passando por uma epidemia de Influenza A (H1N1). O Ministério da Saúde está lançando uma série de campanhas de prevenção e informação a respeito da gripe suína. Isso não pode fazer com que a população busque a auto medicação?
Álvaro Nascimento: Essa questão é polêmica. A autoridade sanitária tem por obrigação informar a população no sentido de não causar pânico e colocar a epidemia de H1N1 no seu devido patamar, uma vez que o índice de letalidade é menor que o da influenza comum, eu não tenho visto o Ministério da Saúde fazendo propaganda do medicamento contra a gripe, até porque ele é muito caro e não se compra em qualquer lugar, muito pelo contrário. Eu penso que – e essa não é minha área pois não sou farmacêutico e nem médico -, a exemplo da gripe aviária onde vários países saíram comprando estoques de medicamentos que sequer foram utilizados, corre-se o risco de isso se tornar um grande negócio para a proprietária da patente, mesmo que não tenha sua eficácia 100% comprovada. Ao se produzir uma preocupação coletiva em relação a isso, as autoridades sanitárias quase são obrigadas a tranquilizar a população dizendo que tem estoque de medicamento.