ENTREVISTA: A publicidade de medicamentos e o risco sanitário nela embutido

(ENTREVISTA CONCEDIDA À “FOLHA DE LONDRINA”)

FOLHA DE LONDRINA – Falta regulamentação da publicidade de medicamentos no Brasil?
ÁLVARO NASCIMENTO – Regulamentação não falta. O que falta é o cumprimento da série de resoluções da Anvisa, decretos, leis e códigos, como o de defesa do consumidor, que há mais de 30 anos tentam regular a publicidade de medicamentos. Uma grande parte destes estatutos tem sido historicamente desconsiderada pelos setores regulados, que no caso da publicidade de medicamentos são a indústria farmacêutica, as agências de publicidade, os meios de comunicação e o comércio varejista de produtos farmacêuticos. Recentemente, a Anvisa e o Ministério da Saúde perderam uma grande oportunidade de submeter os setores regulados às normas do que existe nos países mais avançados em relação ao tema, como em boa parte da Europa, incluindo a França, Espanha, Reino Unido, Inglaterra, Suíça, como também na Austrália, México e outros. Minha avaliação é que na mais recente Resolução da Anvisa, editada no final de 2008, todas as principais fragilidades do modelo anterior foram mantidas. O resultado disso é que a população segue submetida a risco sanitário concreto, vítima da propaganda de medicamentos feita de forma irracional e perigosa, enquanto a Anvisa segue mantendo uma regulação apenas aparente, feita após a irregularidade ter sido cometida, quando ela poderia optar por analisar previamente as peças antes de sua disseminação. A Agência se satisfaz em aplicar multas irrisórias, que não chegam a 1% do que é investido em publicidade pela indústria farmacêutica. Por outro lado, não há mecanismos eficientes que impeçam que mesmo estes valores irrisórios sejam repassados aos preços dos medicamentos e pagos pelo consumido. Além disso, a frase obrigatória em todas as peças, “A persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado”, que deveria ser de alerta, na verdade é de estímulo à automedicação, pois preconiza a busca de um prescritor após a automedicação ter sido praticada.

FOLHA DE LONDRINA – É possível medir a magnitude do descumprimento destas regulamentações?
ÁLVARO NASCIMENTO – O descumprimento, pelos setores regulados, das regulamentações relativas à propaganda de medicamentos faz com que convivamos com o fato de 90% das peças publicitárias de medicamentos disseminadas para o grande público serem irregulares. Estes números são da própria Anvisa, com base na monitoração feita por equipes instaladas em várias universidades brasileiras que analisaram mais de seis mil anúncios. É um índice alarmante. E a principal irregularidade cometida diz respeito à obrigatoriedade de constar, no anúncio veiculado, a contra-indicação principal daquele determinado medicamento. Portanto, de cada 10 peças publicitárias de medicamentos, nove não deveriam sequer ter sido veiculadas.

FOLHA DE LONDRINA – Há dados sobre essa consequência?
ÁLVARO NASCIMENTO – Há mais de dez anos, os medicamentos são o principal agente de intoxicação humana oficialmente registrado no Brasil, de acordo com o Sistema Nacional de Informações Toxicológicas, o Sinitox, da Fiocruz. Mesmo retirando as tentativas de suicídio deste número, os medicamentos seguem na liderança das intoxicações. Os números nacionais disponíveis mais recentes são de 2007. Segundo o Sinitox, foram registrados 34.028 casos de intoxicação humana por medicamentos naquele ano. Se retirarmos os 15.119 casos de tentativas de suicídio, teremos 18.909 casos de intoxicação por medicamentos em pessoas que buscaram no medicamento uma forma de prevenir, tratar ou se recuperar de doenças. Se dividirmos pelos 365 dias do ano, são quase 52 casos por dia, ou seja, um caso oficialmente registrado a cada 30 minutos. E ainda devemos considerar três questões. A primeira é que estes casos são quase que exclusivamente os notificados pelo sistema público de saúde, já que a rede privada pouco notifica, o que praticamente exclui deste índice grande parte dos 40 milhões de brasileiros cobertos por planos de saúde, que em caso de intoxicação buscam assistência na rede credenciada a seu plano. E estes são justamente os brasileiros de maior poder aquisitivo, logo, que consomem mais medicamentos. Outro fato a ser considerado é a subnotificação que ocorre mesmo no âmbito do SUS. E a terceira questão reside no fato destas notificações se referirem basicamente aos casos mais graves, cujas manifestações causam tal incômodo, que fazem com que a vítima da intoxicação medicamentosa saia de casa e enfrente todo tipo de dificuldades conhecidas para ser atendida no SUS. Esses ingredientes indicam que estes casos devam ser em número ainda maior.

FOLHA DE LONDRINA – Mas é possível afirmar que os casos de intoxicação são todos provenientes da propaganda irregular?
ÁLVARO NASCIMENTO – Boa pergunta. A indústria farmacêutica argumenta que não há como comprovar que esses números são decorrentes da propaganda de medicamentos. Só que a influência que a propaganda tem junto à população está mais do que comprovada. Em pesquisa realizada em 2007 pelo Procon de São Paulo, por exemplo, diante da pergunta “Você acha que a publicidade de medicamentos induz à automedicação?”, nada menos que 63,33% dos entrevistados disseram que sim. Claro que esta também é uma característica cultural da população brasileira. Mas essa cultura não caiu do céu. Ela foi e é estimulada diariamente, há décadas, com vistas a elevar o consumo abusivo e perigoso de produtos farmacêuticos, desconsiderando o perigo dessa prática. A mudança cultural não é algo simples de ser feito, mas precisa ser iniciada. Mas se o próprio modelo regulador continua estimulando o consumo, com frases do tipo ‘a persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado’, isso fica cada vez mais difícil de acontecer. O que essa frase traduz de fato? A lógica de que é correto consumir pelo menos o primeiro medicamento e só no caso dos sintomas persistirem um prescritor deve ser procurado. Ao invés de ser uma frase de alerta, na prática é uma frase de estímulo à automedicação. Não é à toa que é a exigência da atual regulação mais bem cumprida pelo setor regulado. O modelo regulador, por incrível que possa parecer, impõe uma frase nas peças publicitárias que submete a população a risco sanitário concreto.

FOLHA DE LONDRINA- A publicidade de medicamentos no Brasil é irresponsável?
ÁLVARO NASCIMENTO – Vou te responder com um exemplo real. Como você denominaria uma propaganda de um anti-histamínico, indicado para pessoas alérgicas, cujo conhecimento farmacológico acumulado sobre seu fármaco indica que ele é contra-indicado para crianças menores de 12 anos, sendo que a propaganda do produto utiliza a figura de um bebê de poucos meses de idade com vistas a elevar o seu consumo? Na própria bula do medicamento consta a contra-indicação, o que demonstra que o laboratório tem conhecimento daquela limitação. Entretanto, é a figura de um bebê a utilizada na propaganda do produto. Esta propaganda representa risco sanitário concreto. Se a legislação existente é pública, conhecida pelos setores envolvidos com ela, tendo sido amplamente debatida por todos estes setores nas várias câmaras setoriais e técnicas da Anvisa, que nome podemos dar a este tipo de publicidade?

FOLHA DE LONDRINA – O que precisa ser feito para melhorar a situação no país?
ÁLVARO NASCIMENTO – Eu tenho uma percepção que explica pelo menos parcialmente porque somos obrigados a conviver com este quadro. Eu a denomino de Triângulo da Modernidade Cínica. Imagine um triângulo onde em uma das suas pontas você tem nosso Senado Federal, com seus 81 membros, dos quais até o ano passado 16, isto é, 20%, não tinham um voto sequer, porque são suplentes. Este Senado é o responsável pela aprovação dos nomes dos dirigentes de todas as agências reguladoras, como a Anvisa, Aneel, Anatel, ANS, etc. Na segunda ponta deste triângulo cínico, você coloca os dirigentes das nossas agências, que deveriam regulamentar, fiscalizar e eventualmente punir todos os setores regulados no Brasil, das telecomunicações à indústria farmacêutica. E na terceira ponta do triângulo temos todos estes setores regulados, que se conectam com a primeira ponta do triângulo através dos conhecidos mecanismos de financiamentos de campanhas eleitorais. É aí reside o cinismo do modelo. Algum brasileiro que acompanhe minimamente a conjuntura de nosso país e as deficiências de nosso incipiente sistema eleitoral tem dúvidas quanto ao evidente conflito de interesses existente nesse modelo? Qual a modernidade dele? O desenho do modelo já fere de morte o papel dessas agências quanto à sua autonomia, quando incorpora em sua gênese a aprovação das suas diretorias por parlamentares diretamente compromissados com os interesses econômicos de empresas que estas mesmas diretorias irão fiscalizar e punir. A meu ver é um modelo de sucesso. Obviamente quando a ótica é o interesse destas empresas e não o da população. A sua pergunta é sobre o que precisa ser feito para melhorar esta situação. A meu ver já passou da hora da sociedade se debruçar sobre o modelo de funcionamento de nossas agências. A primeira providência é superar o claro conflito de interesse existente no mecanismo de nomeação e aprovação de seus dirigentes, a cargo de quem recebe financiamentos pesados dos setores onde estas agências deveriam agir. Este é um problema que atinge o conjunto das agências e não só as da área da saúde.

FOLHA DE LONDRINA – Existem soluções que já estejam em andamento?
ÁLVARO NASCIMENTO – Na questão concreta da propaganda de medicamentos, o mundo já marchou há tempos para um modelo de regulação que prioriza a precaução relativa ao risco e a prevenção de agravos em substituição a este modelo ultrapassado representado pela regulação feita quando a população já foi exposta a risco. Na Consulta Pública realizada pela Anvisa, propusemos o estatuto da anuência prévia da publicidade farmacêutica, mas infelizmente a direção da Agência preferiu o frágil argumento, esgrimido pelos setores regulados, de que a aprovação prévia das peças publicitárias pelo sistema nacional de vigilância sanitária representaria uma agressão à sua liberdade de expressão comercial, seja lá o que isso represente. Eu próprio e uma série de especialistas em uso correto do medicamento, além de entidades de saúde e de consumidores, fomos acusados pela indústria farmacêutica de, ao propor a anuência prévia da publicidade farmacêutica, estarmos reinstituindo a censura que tínhamos na época da ditadura. Este argumento é uma falácia completa, já que a anuência prévia existe de forma plena em países democráticos da União Européia como França, Espanha, Reino Unido, Inglaterra, Suíça e em outros como Austrália. Seria cômico afirmar que nestes países existe ditadura porque sua propaganda farmacêutica é analisada e aprovada por instituições de saúde pública, antes de ser disseminada junto à população. A anuência prévia seria um passo muito importante para se elevar o controle e assegurar a qualidade mínima da informação sobre medicamentos repassada à população diariamente, com impacto direto no uso racional de medicamentos.

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