(ENTREVISTA CONCEDIDA AO SITE DA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UERJ, “FCS PENSA A PANDEMIA”)
FCS Pensa a Pandemia (FPP) – Suas pesquisas de mestrado e doutorado abordaram a questão dos medicamentos, regulações, usos e propaganda enganosa. Qual sua avaliação sobre o aparecimento e a promoção de medicamentos e terapias considerados mágicos contra a covid-19, tais como cloroquina, ivermectina e mais recentemente o ozônio de aplicação retal? Parece que vivemos uma epidemia de propaganda enganosa, não?
ÁLVARO NASCIMENTO – Parece, não. Estamos efetivamente vivendo uma epidemia continuada de mentiras no âmbito de uma tragédia sanitária de proporção nunca antes enfrentada, com mais de 100 mil mortes oficiais. Esta calamidade é agravada tanto pela inação dos governos, em particular o federal, como pela disseminação de indicações terapêuticas cientificamente não comprovadas e, pior, que elevam o risco sanitário a que a população está exposta. O uso irracional de cloroquina, ivermectina, ozônio e outras substâncias como solução para a pandemia só faz aumentar ainda mais a demanda sobre os serviços de saúde, que já operam no limite de sua capacidade em praticamente todos os estados. A cloroquina é indicada de forma restrita para profilaxia e tratamento de malária, nos casos de amebíase hepática e, em conjunto com outros fármacos, tem eficácia clínica na artrite reumatoide, no controle do lúpus e nas doenças relativas à fotossensibilidade. Seu uso é restrito e controlado porque ela pode provocar uma infinidade de efeitos colaterais graves, inclusive cardíacos. A ivermectina é indicada também de forma restrita para o tratamento de males causados por vermes e parasitas, não existindo nenhum resultado conclusivo sobre sua eficácia no combate à Covid-19. Também em relação ao ozônio, até o momento são desconhecidos estudos e publicações que demonstrem tanto eficiência como segurança em relação à Covid-19. A própria Anvisa emitiu Nota Técnica onde afirma não existir nenhuma comprovação de que o uso destas substâncias seja eficaz contra a atual pandemia. O fato deste tipo de aumento do risco sanitário, baseado em informações sem nenhum respaldo científico, estar sendo patrocinado pessoalmente pelo Presidente da República e por muitos de seus seguidores reflete o quanto esta quadra da vida nacional está marcada pela infâmia. Não há outro adjetivo capaz de traduzir tal comportamento. Esse quadro dantesco impõe às chamadas forças vivas de nossa sociedade um esforço coletivo no sentido de superar o mais rapidamente possível esta triste conjuntura.
FPP – O que explica o fascínio e crença em coisas que não estão cientificamente fundamentadas? Você considera o Brasil um terreno fértil para essa tendência? Até o momento, o país, junto com os EUA, tem protagonizado o culto a medicamentos considerados milagrosos…
ÁLVARO NASCIMENTO – Permita-me fazer um reparo. No meu modo de ver não é o país, nem mesmo os Estados Unidos que têm protagonizado o culto a medicamentos cujo uso não apenas não se embasa no conhecimento farmacológico como é potencialmente perigoso. Quem faz isso são algumas autoridades e seguidores irresponsáveis que desrespeitam não apenas o conhecimento científico acumulado por gerações, mas atacam os próprios avanços civilizatórios que marcam a História do mundo. Muitos destes avanços foram duramente conquistados por diversas sociedades, como o enfrentamento do racismo, as paulatinas conquistas da igualdade de gênero, enfim, as políticas de combate às desigualdades. Note que a mesma voz que mente em relação à cloroquina, comete frases como “eu não te estupro porque você não merece”, “meu filho jamais casaria com uma negra porque foi bem educado”, estimula queimadas na Amazônia e tem como guru um auto proclamado filósofo que defende que a Terra é plana. Felizmente não é o país que protagoniza este tipo de ignorância, mas apenas uma parcela, minoritária, por mais que esta parcela tenha, através dos torpes mecanismos já conhecidos, chegado ao poder, aqui e alhures. Não esqueçamos que Trump perdeu a eleição no voto popular. Já no caso do Brasil, a eleição de Bolsonaro foi consequência também do uso intensivo de mentiras eletrônicas disparadas ilegalmente aos milhões. E não devemos esquecer que somando os votos nulos e brancos com as abstenções, houve um contingente de 42,1 milhões de eleitores que não escolheram nenhum candidato e que isto representa cerca de um terço do total. E que até o Brexit na Inglaterra foi decidido por maioria estreita de 51,9% contra 48,1% dos que votaram, registrando uma abstenção também importante de 28,2% de eleitores que não foram às urnas, num referendo marcado por um clima onde quem venceu abusou de justificativas anti-imigratórias, criando um terreno fértil para o aumento de casos de xenofobia. Essa gente não é maioria em nenhum destes países e não pode ser confundida com sua totalidade. Esse é meu ponto. Sobre soluções terapêuticas não cientificamente fundamentadas, vale ressaltar que a busca da cura de doenças com a utilização de substâncias não totalmente comprovadas não é algo novo. A origem da terapêutica como atividade de preservação da saúde, do bem-estar, da própria vida e o uso de produtos tidos como medicinais se confundem com a própria história da humanidade. Arqueólogos encontraram escritos na região da Suméria, parte do atual Oriente Médio, com mais de 7 mil anos. Neles já eram descritas fórmulas e processos terapêuticos só cientificamente comprovados milhares de anos depois, como é o caso do uso da papoula como analgésico. Mas o que ocorre hoje não é a busca de soluções terapêuticas em um terreno de ausência de conhecimento como há 7 mil anos. O que assistimos é a irresponsabilidade, a desfaçatez e a ignorância elevadas à última potência, assistimos a negação diária da ciência e do conhecimento acumulado pelo processo civilizatório de séculos.
FPP – Ainda na questão do uso dos medicamentos de eficácia não comprovada. Você acha que isso tem a ver com uma certa informalidade com que lidamos com remédios? Pergunto isso a partir de observação do cotidiano, no qual é comum – e isso desde antes da pandemia – as pessoas terem acesso a medicações de uso restrito por meio de algum “jeitinho”, seja nas farmácias, seja com conhecidos. Eu mesmo conheço pessoas na minha família adeptas da prática. Essa correlação faz sentido?
ÁLVARO NASCIMENTO – Concordo com você que há certa informalidade no uso de medicamentos no Brasil. Mas isso não caiu do céu, não é uma predestinação divina. Na minha dissertação de Mestrado, defendida no Instituto de Medicina Social da Uerj, analisei os interesses da indústria farmacêutica, agências de publicidade, empresas de comunicação e do comércio varejista com vistas a estimular esta cultura da informalidade no sentido de elevar o consumo de produtos farmacêuticos no Brasil. Concluí que isso é um projeto, com estratégia muito bem definida e implementada. O estudo, orientado pela professora Jane Dutra Sayd, examinou de forma crítica a pressão mercadológica destinada a criar supostas necessidades terapêuticas que levam ao consumo de produtos que possuem significativos riscos devido a seu uso incorreto, irracional, abusivo e muitas vezes perigoso. Pior: esses interesses de mercado nunca encontraram por parte do Estado uma regulação eficiente, apesar de vários países do mundo, como demonstrei em minha tese de Doutorado também defendida na Uerj, terem conseguido barrar estes interesses que expunham suas populações a risco. Muitos países há anos impuseram regras rígidas à disseminação deste ideário de que o medicamento é um produto como outro qualquer e que pode ser consumido a mancheia. O que demonstrei é que é possível regular práticas de propaganda enganosa, perigosa e paulatinamente superar esta cultura da informalidade, que só serve à acumulação de capital à custa da disseminação do risco.
FPP – O que a profusão e disseminação de fake news e propagação de medicamentos “milagrosos” representa para o direito à saúde? Você vê essa tendência como uma ameaça à democracia?
ÁLVARO NASCIMENTO – A profusão e propagação de mentiras, seja lá em que seara for, não só devem como têm de ser desmascaradas, combatidas e também punidas exemplarmente, pois são atos criminosos. Nesse quesito, o aparato judicial brasileiro está em dívida com a sociedade pelo menos desde o impeachment de uma presidente honesta sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade. A proliferação de notícias falsas desde as tão famosas quanto ridículas pedaladas fiscais não se dá por acaso. Ali foi um marco para esta avalanche que tomou conta do País e que chegou ao ápice na eleição de um Presidente da República totalmente despreparado e que tenta fazer de sua ignorância um exemplo a ser seguido. O Brasil não é isso. O uso deste tipo de prática criminosa na indicação de uso de medicamentos sem comprovação científica é apenas mais um exemplo, sim, da negação de direitos que têm marcado este governo, sejam direitos trabalhistas, previdenciários e até de manifestação de opinião, como é o caso da lista de servidores antifascistas produzida pelo novo SNI de Bolsonaro. O direito à saúde entra nesse bojo quando a inação e a indicação de terapias não comprovadas dão a tônica às políticas antipandemia que deveriam ser implementadas pelo governo federal. O ataque a tantos direitos não ameaça apenas a democracia, o que já seria inconcebível, mas representa uma desvalorização da vida como bem maior a ser protegido. Este governo dissemina uma ideologia onde milhares de mortes evitáveis estão sendo naturalizadas. Frases como “E daí?” diante das milhares destas mortes são o exemplo mais assustador disso.
FPP – Você é jornalista de formação. Tem gostado do que lê e ouve no noticiário? Qual sua avaliação sobre o debate de medicamentos na grande imprensa, nesse período de avalanche informativa e fake news em profusão?
ÁLVARO NASCIMENTO – Desde que frequentava as aulas da graduação na UFF, ainda sob o tacão do AI-5, do Decreto 477 e de outros instrumentos criados pela ditadura militar, tenho uma posição crítica em relação à chamada grande imprensa. Após a ditadura esta opinião não se alterou. E a postura parcial e alguma vezes criminosa de muitos veículos de comunicação no período recente fortalecem, a meu ver, a necessidade de que o Brasil enfrente o debate e crie mecanismos que garantam a real democratização dos meios de comunicação. A sociedade precisa ter voz na mídia. Isso é garantido pela Constituição. Não é uma benesse ou um favor do coronelismo midiático que se tornou dono principalmente das mídias eletrônicas. Parte importante dea informalidade no uso irracional e perigoso de medicamentos tem na grande mídia brasileira um dos maiores responsáveis. Propagandas ilegais de medicamentos, mesmo segundo a frágil regulação existente no Brasil, enchem os cofres dos donos das mídias e são disseminadas noite e dia, como se os proprietários dos meios de comunicação desconhecessem o que diz a Lei. Entretanto é preciso reconhecer que em relação especificamente às indicações de cloroquinas, ivermectinas, ozônios e coisas do tipo, a mídia tem procurado esclarecer a população de forma correta, informando que nenhum destes produtos encontra respaldo científico como tratamento para a Covid-19. Mas repito que isso não é nenhum favor, é obrigação.
FPP – Como tem sido sua pandemia? Sua rotina no interior? Com o que você tem trabalhado e o que tem lido?
ÁLVARO NASCIMENTO – Eu me aposentei há seis anos, após 37 anos de trabalho, sendo 27 deles na área de comunicação e informação na Fiocruz. Ao sair do Rio pensava em me dedicar exclusivamente à literatura. Lancei dois livros de contos neste período e estou escrevendo um terceiro. Mas como diriam nossos avós, pau que nasce torto, morre torno. Então sigo usando com muita frequência redes sociais, facebook e whatsapp, principalmente, para me posicionar, contribuir com o que aprendi e tentar manter alguma militância política, em particular na área da saúde. Nos intervalos entre os contos e as redes sociais, cuido de minhas hortas, algumas árvores frutíferas e me divirto numa pequena marcenaria que montei realizando pequenos trabalhos manuais. Enfim, os dias têm sido curtos e quando dou por mim, eles escurecem. Minhas últimas leituras foram “Os três grandes”, de Jonathan Fenby, que conta com profusão de detalhes as três conferências realizadas em Casablanca, Teerã e Yalta durante a Segunda Grande Guerra, reunindo Stalin pela Rússia, Churchill pela Inglaterra e Roosevelt pelos Estados Unidos; e “O testamento do Sr. Napumoceno”, do excelente romancista cabo-verdiano Germano Almeida.
FPP – Gostaria de finalizar perguntando sobre sua expectativa em relação às consequências da pandemia para o campo da saúde pública, especialmente dos medicamentos. Você acha que sairemos pior da pandemia? O que será necessário reconstruir? Como retomar o protagonismo da ciência no debate e na formulação de estratégias de saúde pública?
ÁLVARO NASCIMENTO – Acho que tudo está apontando para que saiamos desta pandemia piores do que quando entramos. Temo que caso mobilizações e providências não sejam imediata e efetivamente tomadas, como o acesso universal a uma eventual vacina anti-Covid-19, só para citar o mínimo, o Brasil e o mundo sejam ainda mais desiguais e injustos no futuro. Para mim a questão não é só reconstruir, pois o que tínhamos era um mundo excludente, tanto internamente em cada país como nas relações entre nações. Eu não quero aquele mundo, considerado por muitos como “normal”, de volta. Aquele mundo precisa e deve ser transformado. Não permito cair na inocência de que a existência de uma pandemia irá, como por milagre, alterar as políticas que nos levaram a conviver com o que convivíamos. E mesmo a retomada do que você chama de protagonismo da ciência merece muitos reparos. Creio que devemos começar tomando um banho de humildade para sermos capazes de ver aonde erramos. O que levou parte importante da sociedade a abandonar, só para citar dois exemplos que fizeram parte desta nossa conversa, as urnas eleitorais, abrindo caminho para esta tragédia em termos políticos, sociais, culturais e econômicos que estamos vivendo com Bolsonaro? O que foi feito e, principalmente, o que deixou de ser feito para evitar que processos como este não se repitam no futuro? E em segundo lugar onde os profissionais da ciência erraram para que uma parcela também significativa da sociedade, infelizmente incluindo até mesmo médicos e profissionais de saúde, abraçassem soluções mentirosas como a cloroquina e viessem a desconsiderar o conhecimento acumulado sobre estas substâncias? São questionamentos que, cedo ou tarde, merecem análise para que consigamos superar o momento atual. Mas preciso, também, deixar claro que acredito numa saída positiva e em um futuro promissor para nosso País e em particular para nosso povo. Em tempos tão lúgubres como os atuais, o socorro da poesia é um cais seguro. Parafraseando Mario Quintana, “eles passarão, nós passarinhos”.