Trabalhei com informação em saúde editando publicações da Fiocruz por 27 anos. Nos últimos dias (incomodado com a cobertura jornalística sobre o assunto) me dediquei a buscar em fontes que sempre considerei confiáveis o maior número possível de informações sobre a vacina russa contra a Covid-19, na medida em que em relação às demais a quantidade de informações é plena. Listo aqui oito informações que considero importantes sobre a Sputnik-5 e que ainda não vi, pelo menos de forma sistematizada, expostas na mídia. Alerto que este texto não pretende convencer ninguém a nada (ou sobre nada). Apenas registrar o que compilei em fontes que considero seguras.
1. Um artigo científico assinado pelos cientistas Denis Logunov, Inna Dolzhikova, Olga Zubkova, Amir Tukhvatullin, Dmitry Shcheblyakov, Alina Dzharullaeva (todos Mestres ou Doutores do Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya) com os resultados preliminares das fases 1 e 2 de testes da vacina russa contra a Covid-19 acaba de ser publicado (em 4/9/2020) numa das mais importantes e prestigiadas revistas científicas sobre Medicina, cujos artigos são revistos por cientistas de referência no mundo: a britânica The Lancet. O estudo demonstra que a vacina russa não apresentou efeitos adversos e induziu resposta imune em todos os organismos humanos quando testada em suas fases 1 e 2. No artigo aprovado pelos avaliadores da Lancet, os autores concluem que “a vacina é altamente imunogênica e induziu fortes respostas em 100% dos voluntários adultos saudáveis, com títulos de anticorpos em participantes vacinados mais elevados do que no plasma convalescente”.
Entenda-se por plasma convalescente o sangue de indivíduos infectados pelo vírus que produziram anticorpos para a doença. Traduzindo: a vacina criou, nos organismos humanos testados, mais anticorpos contra o novo coronavírus que o próprio coronavírus nos organismos que sobreviveram à sua infecção. Ressalto que no artigo da The Lancet os próprios autores dizem que “estudos em grande escala e de longo prazo, incluindo uma comparação com placebo e monitoramento adicional, são necessários para estabelecer a segurança e eficácia a longo prazo da vacina para prevenir a infecção por Covid-19”, o que em nada invalida os resultados das fases 1 e 2.
2. Sobre as críticas relativas a um possível “registro precoce” da vacina russa antes de se realizar a fase 3 (a de testes em uma população mais numerosa), o virologista Feliks Ershov, do Centro Gamaleya, esclarece que na Rússia a legislação só permite que uma vacina seja testada em sua fase três (ou em qualquer grupo superior a mil pessoas) se ela obtiver, PRELIMINARMENTE, o registro junto às autoridades de saúde, o que só é emitido após avaliação dos resultados relativos à segurança e efetividade positivos das fases 1 e 2.
3. E porque justamente a Rússia consegue superar a corrida frente aos avançados laboratórios mundialmente famosos e anuncia a descoberta da vacina na frente de todos? Ela é irresponsável com a saúde de seu povo? Isso não é esquisito? Fato: a Rússia é a primeira a registrar vacina contra a COVID-19 porque o País já tem vasta experiência no desenvolvimento das vacinas como as anti-ebola e outros tipos de coronavírus. Foi no mesmo Centro Gamaleya onde se desenvolveu a vacina contra o coronavírus causador da chamada MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), que surgiu na Arábia Saudita e se espalhou em 2012.
4. E qual é o “pulo do gato” que os cientistas russos descobriram na frente dos laboratórios farmacêuticos internacionais? Tentarei resumir. Cientistas do Gamaleya inseriram um fragmento do gene com o código da proteína do novo coronavírus no interior de um vírus de resfriado comum. Ao contrário dos outros laboratórios que optaram por partir do zero em seu esforço, cientistas do Gamaleya usaram uma tecnologia já comprovada e disponível, o que ajuda a explicar a rapidez das respostas dos testes quanto à segurança e eficácia nas fases 1 e 2. E como a Rússia tem experiência (isso ninguém no mundo nega) no desenvolvimento de vacinas vetoriais, o Gamaleya pode produzir a vacina mais rapidamente. Resumindo, eles já tinham domínio sobre a base do processo, enquanto os demais saíram da estaca zero. Conhecer de forma profunda o desenvolvimento do processo de criação da imunidade fez a Rússia acelerar o desenvolvimento do produto, não por ser irresponsável e querer expor seu povo a risco, mas por uma razão eminentemente técnica.
5. E o que demonstraram os testes da vacina anti-Covid 19 nas fases 1 e 2 que a The Lancet acaba de publicar? Demonstram que a vacina não traz efeitos colaterais, é muito bem tolerada pelos organismos humanos testados (todos entre 18 e 60 anos) e tão importante quanto: é eficaz, porque estimulou o sistema imunológico e gerou a produção de anticorpos, criando imunidade frente ao vírus em todos os organismos testados.
6. Mesmo com tudo isso, porque não esperar o término da fase 3 dos testes na própria Rússia, em um número muito maior de pessoas, para se ter mais certeza da segurança e efetividade da vacina? A Rússia (Putin) está querendo fazer marketing político com a pandemia? Este é um ponto central no debate. Por tudo que já sei e reli, certamente que o ideal seria, sim, aguardar o término dos testes da fase 3, seguindo os protocolos que impõem um processo mais vagaroso (e logicamente mais seguro) de desenvolvimento. Aliás, isso ninguém precisa dizer aos cientistas do Gamaleya. Ocorre que a necessidade (com as devidas garantias de segurança e efetividade, claro) do desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 se coloca como uma das demandas mais importantes e urgentes da história da Humanidade. A atual pandemia infectou mais de 27 milhões de pessoas e matou 900 mil em apenas oito meses (isso de acordo com os números oficiais, que vários especialistas afirmam estarem subnotificados). A questão central em debate é: considerando riscos, benefícios e o momento de extrema fragilidade da população planetária (principalmente a pobre e sem acesso a sistemas de saúde), e a desconsideração ou flexibilização das medidas de isolamento físico em quase todo o mundo, medidas consideradas heterodoxas em tempos normais, desde que comportem evidente grau de segurança à vida humana, podem e devem ser adotadas?
7. Se a vacina é tão eficaz, porque os russos estão anunciando a necessidade de duas doses? Porque as vacinas chamadas de vetoriais, desenvolvidas com a mesma base tecnológica da Sputnik-5, demonstraram manter imunidade dos indivíduos por dois anos, o que faz com que os cientistas do Gamaleya estimem que a vacina contra a Covid-19 possa ter o mesmo resultado. Essa é a dúvida mais evidente e que permanece. E só o tempo poderá saná-la. O problema que a Humanidade tem em mãos é que nesse tempo – que seria necessário para se ter ainda mais certeza (que sempre será relativa) em relação à vacina -, o vírus poderá matar outras 900 mil pessoas no mundo (ou mais). E sobre a necessidade de mais de uma dose, não se vacina contra a gripe todo ano no Brasil? A lógica é a mesma.
8. Mas se os estudos das fases 1 e 2 foram realizados em indivíduos de 18 a 60 anos, será seguro aplicar a vacina em pessoas de fora desta faixa etária? A resposta é não. Não é seguro. Por isso a vacina só será aplicada em pessoas entre 18 e 60 anos em um primeiro momento. Os que estão fora desta faixa etária deverão manter as políticas de prevenção adotadas até agora (isolamento, uso de máscara, testagem, etc.). Concluída a fase 3 de testagem, já iniciada e envolvendo 40 mil pessoas, e tendo em mãos os resultados, aí sim todos receberão a vacina.