Perdi a minha mãe, Annette Nascimento, para uma infecção hospitalar em 27 de outubro de 2004. Foram nove semanas e meia em um CTI, onde a brava mocinha já com 76 anos se recuperou tenazmente de um Acidente Vascular Cerebral, mas logo a seguir não conseguiu vencer uma bactéria resistente. Lá se vão quase 20 anos de muita, mas muita mesmo, muita demais que não tem adjetivo capaz de traduzir, falta e saudade. Ainda choro como se tivesse sido ontem.
Em um daqueles momentos que grudam na gente para sempre, eu segurava a mão dela no compartimento que lhe cabia no CTI e falava com ela durante todo o tempo que me era permitido ficar ali. Era uma determinação médica, pois lá se iam três dias da retirada da medicação para promover seu coma induzido (forma de impedir a ocorrência das repetidas convulsões que obrigaram que ela fosse presa ao leito) e minha tarefa era trazê-la de volta.
O meu tom de voz, segundo o médico intensivista que a cuidava, poderia contribuir para fazê-la sair do coma, após tanto tempo da suspensão das medicações. E deu certo! Ela abriu lentamente os olhos. Ainda acatando a determinação médica, pedi que se ela estivesse me ouvindo e entendendo o que eu dizia, que me desse algum sinal.
– Qualquer sinal que você consiga, mãe. Aperte minha mão, pisque os olhos várias vezes … me dê algum sinal, eu disse baixinho.
Ela não só apertou a minha mão com força, como ao mesmo tempo piscou os olhos meia dúzia de vezes e, não bastasse isso, sorriu para mim. E aí fui eu que quase morri, com o coração disparado.
– Marcelo!!!! – gritei.
Marcelo era o médico intensivista, que saltava de leito em leito conferindo o estado de cada paciente ali deitado, um em estado mais grave que o outro.
– Ela acordou! – gritei sem largar a mão dela. Ele veio às pressas.
Depois de 72 dias desacordada – primeiro pelo AVC, depois pelas medicações anticonvulsivantes – Dona Annette voltava à vida.
Também por determinação médica, pedi a ela que tentasse falar pausadamente. Informei que ela estava no hospital, que estava sendo cuidada já havia muitos dias porque tinha adoecido, que já estava melhor e que dali em diante tinha tudo para se recuperar.
Ela me ouviu, me olhou, engoliu em seco e a primeira coisa que ela balbuciou após toda aquela maratona foi:
– A renda portuguesa. Você cuidou?
Minha gargalhada – que revelava um misto de surpresa pela pergunta, alegria e uma enorme descontração após tanto tempo de sofrimento e tensão – ecoou tão alto que quase levantou dos seus respectivos leitos todos os pacientes entubados do CTI.
Diante do olhar estupefato e interrogativo do Marcelo, e – óbvio! – como filho obediente, respondi num só tempo a ela e a ele:
– Claro, mãe. Estou indo à sua casa duas vezes por semana, rego todas as plantas, varro o quintal, pago as contas que encontro na caixa do correio… tá tudo bem. Não se preocupe com nada disso, agora. E a sua renda portuguesa está linda. Só está sentindo uma saudade danada de você.
Três dias depois minha mãe morreu. Uma parada respiratória provocada por uma infecção pulmonar resultado de tanto tempo de internação a levou embora da minha vida e da vida de um exército de gente que a amava, respeitava e alguns que conheciam a sua trajetória de vida além disso também a admiravam.
Ah! A renda portuguesa? Veio para a minha casa, foi batizada com o singelo nome de “Dona Annette”, já morou comigo em três endereços desde 2004, está fazendo, por baixo, uns 30 anos de vida na família, já ganhou vasos novos, pedestais novos, vitaminas periódicas e tem seus locais de morada volta e meia alternados, de acordo com os calores tropicais e os invernos serranos, sempre em busca de uma “meia sombra” que não a prejudique.
Essa balzaquiana segue mais linda a cada ano que passa. Cuido-a com a dedicação de um filho e até conversamos volta e meia. Quando viajo por mais tempo, providencio visitas que a reguem e quando retorno a primeira preocupação que tenho é saber se ela está bem. É como se a pergunta feita por minha mãe após os 72 dias de coma seguisse em mim:
– A renda portuguesa. Você cuidou?